terça-feira, 15 de maio de 2007

Claridade cotidiana *

Clara andava indignada com as injustiças do mundo, com seus objetivos particulares e até com a natureza tão descontrolada nestes dias. Para falar a verdade, ela estava confusa, chegara a uma idade de decisões, mas o horizonte não se mostrava muito propício.
Clara enclausurada habitava um cômodo escuro em uma periferia qualquer do planeta. As periferias sempre eram descritas nos noticiários como os locais mais miseráveis, desumanos; para ela periferia lembrava os anéis de Saturno, não sabia bem porque. Sua imaginação fazia com que ela olhasse o céu e se transportasse para uma estação espacial, sonhava com isso desde criança. Seres misturados vivendo sem peso na imensidão negra. Utopia de salvação desta realidade terráquea.
O relógio tocava pontualmente às cinco e trinta da manhã e ela se lembrava que não era tão terrível acordar a esta hora, porque no Japão o dia já estava terminando. Então nada duraria para sempre. Que consolo; lembrou-se de um história que lera ainda pequena. A personagem estava sempre tentando ver o lado bom. Afastou as idéias, ela só queria sonhar, mas o relógio não deixava.
Madrugadas podem trazer sensações gélidas a um coração aquecido de esperanças. Não havia muitos rostos conhecidos ns ruas. Passava pelo portão de Claudia. Essa teve mais sorte. Acorda tarde, vai à escola, tem pai e mãe. O futuro de Claudia é tão claro. O de Clara é pura madrugada sem sol.
Ônibus lotado, pessoas espremidas. Homens com hálito de bebida forte se esfregando. Ah se alguém levantasse! Se ao menos pudesse se sentar, olhar sem ver a paisagem diária. Sonhar...Uma freada brusca e quase que o homem desatento na rua é atropelado. Isso é que dá ficar sonhando acordado, pensa Clara. Não se deve sonhar de dia, espera pela noite seu estúpido!
Bom-dia a todos, mais cumprimentos, pega seu cartão. Clara trabalhadora vai marcar o ponto, junto com Ana, Bia, Joaquim, Carlos e um monte de outros. Leva o dia, Clara querida.
Cartas, a fila do banco, alguém mal humorado. Ela não tem vontade de ficar de mau humor. Para que afinal? Tem que tomar decisões. É a idade. O pai já se foi, a mãe resiste, os irmãos seguem, os amigos buscaram outras estradas. Clara continua. Clara monótona.
O estômago reclama, é hora do almoço. Leva a marmita para o refeitório, acompanha a fila de famintos. O cheiro de feijão, arroz e alguma carne tomam conta. Matar a fome traz alegria, aproxima Bia e Carlos, tão diferentes, mas irmãos de sorte. Uma hora de pausa, conversas colocadas em dia. Uma hora nada mais, uma hora.
Mais cartas, mais papéis, um devaneio. O patrão chama a sua atenção. “O que há com você ultimamente. Não sabe que já não tem mais idade para viver no mundo da lua!” Mundo da lua não patrão, queria viver na estação espacial, fazer parte das estrelas, mas agora tenho que escrever cartas, preencher formulários, trabalhar para fazer sua empresa crescer e eu poder comprar a comida no final do mês. Não dá para sonhar. Clara humilhada volta para a sua mesa. Três horas e trinta e cinco minutos. Mais algumas horas. No Japão já é amanhã.
Cinco e cinqüenta, soa o alarme do relógio de ponto. Acorda com o som do alarme, come com o som do alarme, vai para casa com o som do alarme. Escrava de um alarme de relógio. Clara alarmada entre no ônibus de volta para a casa.
Um homem dorme com a cabeça encostada na janela, a mulher mais a frente ronca de boca aberta. Ela se espreme em pé, um homem suado se esfrega atrás, respira quente em seu pescoço. Clara engole as lágrimas. A lua já está no céu, quase não tem estrelas. Quando será que vão lançar a estação espacial? O ponto de Clara. Salta. Passa pelas ruas, as casas já acesas. Não lembra qual a cor delas iluminadas pelo sol. Claudia está na varanda rindo com outras meninas, todas têm livros. Devem estar estudando. Estão rindo. As decisões que não tomamos. O mundo que deixamos outros decidirem por nós.
Um beijo na mãe. “Como foi seu dia?” ”Bom”. Cuidar da sua roupa, a comida do dia seguinte. Dinheiro para o pão, a água. A novela na TV. A mãe olha os artistas, tudo tão bonito! Clara realista vai dormir. Acerta o alarme do relógio. Fecha os olhos. No Japão todos já estão trabalhando. Ainda bem que Clara mora do outro lado do globo, assim pode dormir, pode sonhar. Tentar se decidir antes que o alarme soe e Clara tenha que acordar.
Boa noite Clara querida. Sonhe com os anjos. Sonhe com a estação espacial. Sonhe Clara. Sonhe para poder acordar para a realidade.
* publicado na revista eletrônica de contos Bestiário - www.bestiario.com.br

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